sábado, 13 de março de 2010

Prático x Místico na vida missionária

Quem me conhece há um tempo razoável já descobriu que a vida missionária não é feita só de momentos místicos e espirituais. Quem ainda pensa que a vida missionária é totalmente mística/espiritual ainda não começou a me conhecer!

Já disse que para cada missionário pregando/discipulando/ensinando/orando no campo há pelo menos três outros cuidando das coisas práticas para que isso possa acontecer. Posso agora dizer que mesmo aquele que prega/discipula/ensina e ora inevitavelmente passará por fases em que precisará lidar com o dia a dia da logística quase de forma integral! E isso também faz parte de ser missionário!

Um exemplo prático foi essa semana que passou!

Sabendo há algum tempo que minhas carteiras de motorista brasileira e internacional estariam expirando, buscava maneiras de renová-las sem ter que voltar para o Brasil (fora de questão)!
Foi só há uns 10 dias que descobri ser possível trocar a brasileira por uma moçambicana com validade de cinco anos! Eba, mãos à obra!

Segunda passada Dora e eu fomos para Nampula.

Missão: conseguir todos documentos necessários para a troca, consertar algumas coisas no carro e fazer algumas compras para casa e para construção.

Tempo disponível: um dia e meio!

Saída de Nacala 6h da manhã. Chegada a Nampula: 8h. Início das atividades: 8h mesmo!

Manhã toda em escritórios, secretarias, bichas (como chamam as filas aqui) longas e demoradas. Era Dia da Mulher e todas as queridas trabalhadoras estavam na praça para as comemorações, enquanto os pobres homens tentavam fazer o trabalho de três ao mesmo tempo. Fiquei feliz em ver que existia uma fila especial de mulheres, com atendimento preferencial, mas isso não adiantou nada nas longas chamadas para receber de volta documentos autenticados, notariados ou sei lá o que!

Duas horas foi o tempo que algumas chamadas demoravam! Duas horas... tempo suficiente até para conhecer várias das outras centenas de pessoas esperando, conversar sobre política, família, se mulheres deviam trabalhar em orgãos do governo ou não, quem é mais infiel na tribo makua (os homens ou as mulheres) e assim por diante.

O fim das duas horas me encontraram sentada no encosto de um banco de madeira, com uma senhora sentada no banco a minha frente, usando minhas pernas como encosto, minhas costas bronzeadas com o sol esturricante (ou seriam queimadas), faminta e cansadíssima! Enfim as 16h terminamos... todo choro e sensibilização acabados.

É, tem que sensibilizar para conseguir qualquer coisa feita aqui em Moçambique. Devem haver outros métodos, mas é esse o que consigo usar. Vou ao agente de imigração e com cara de dó digo: Por favor, senhor, preciso muito da sua ajuda! Não sei o que farei se você não me ajudar. Deixei meu Dire (Documento de Residência) aqui há uma semana, mas preciso de uma cópia autenticada dele para um documento que vai expirar na semana que vem. Não posso esperar o processo de renovação de vocês. Será que pode encontrá-lo para mim e deixar que eu leve e faça uma cópia autenticada dele e depois traga ele de volta?

Cara feia de volta!

Por favor moço, essa é minha única saída! Não posso fazer mais nada! Prometo que trago ele hoje mesmo!

Espera um pouco, vou encontrar!

Ufa! Mais uma vez a sensibilização funcionou.

Mas isso se repete em cada balcão, em cada escritório, onde se a pessoa do outro lado não for com sua cara seu documento some ou demora um mês, em vez de um dia.

Sensibilização, sensibilização, sensibilização.

Ufa, cansei!

Vamos comer!

Almoçamos, eu e Dora, 16h30, comida indiana! Delícia! Pelo menos isso valeu a pena!

Super esquema para não sermos roubadas na frente do shoprite. Um dia normal de compras do mês.

Mais sensibilização para o guarda do estacionamento do Ideal (outro mercadinho) deixar a gente estacionar dentro, mesmo que já passou da hora permitida, porque deixar o carro do lado de fora essa hora é pedir para não encontrar o retrovisor que restou no meu pobre e abusado carro!

Ufa, mais uma vez a sensibilização funcionou!

Fim de dia, documentos feitos, falta só buscar um de manhã, mas a lista ainda é grande!

Noite de comunhão com nossos colegas de equipe que vivem em Nampula, família Jo! Comunhão tão gostosa que não vemos a hora passar e vamos dormir tardão! Dia seguinte, luta para sair da cama! Ainda assim, vitória. Mais comunhão no café da manhã e combinos sobre o dia. O pastor nos empresta o carro pois o meu ficará no mecânico.

Como costuma acontecer em mecânicos, nada é rápido, nem simples!

O dia vai passando, vamos riscando outras coisas da lista, mas o carro, ainda!

Cancela a aula da tarde porque não vou voltar a tempo!

Buscamos os vidros que pedimos para cortar, mas os queridos não embalaram nada! Como esperam que vamos levar isso para Nacala, outra cidade? O que custa embalar com caixas de papelão velhas? Só viemos nessa loja pq da última vez fizeram um ótimo trabalho e embalaram tudo direitinho! A senhora pensa que vamos voltar aqui de novo depois desse desapontamento. Pode saber que se tem outra loja de vidro em Nampula, vamos achá-la e vocês perdem bons clientes! Ela não importa. E nós lá no fundo sabemos que é muito provável que não haja concorrente, vamos ter que voltar aqui mesmo! O mal de moçambique: um lugar onde a situação ainda é precária, quase tudo é monopólio!

Pegamos os vidros assim mesmo, saímos pelas lojas que nem duas doidinhas pedindo caixas de papelão. Encontramos algumas e lá vamos nós embalar nossos próprios vidros!

Riscamos mais algumas coisas na lista, compra isso para Chris, isso para mãe Nicky, leva esse documento no aeroporto para ser certificado em Maputo e voltar antes da próxima semana!

Ufa, acabamos! E o carro? Ainda!

Já são 16h, não vamos poder voltar para Nacala hoje pois já vai ficar escuro e a estrada está perigosa e nós, muito cansadas. Pastor Armando e Lurdes ficam felizes! Mais uma noite com eles! Nós no fundo também ficamos.

Enfim o carro! O preço é um pouco alto, mas se os problemas estão resolvidos, beleza!

Última noite ali, mais comunhão, próxima madrugada, adeus!

Primeira parada, comprar pimenta (piri-piri) das crianças do lado da estrada! Está muito caro, vamos seguir a viagem!

Que barulho é esse? Não acredito, é o escapamento de novo? Eles não soldaram bem o tubo flexível! E me cobraram tudo aquilo para um serviço terrível? Abro o capô, deixa eu ver a situation!

Não acredito, quebraram uma mangueira do filtro de ar! Se eu não visse isso, de novo meu motor vai pro beleléu! Pronto, amarrando um pano assim, garante que não vai entrar areia até eu chegar em casa!

Chris, tem problema andar com o tubo flexível solto? Não, só os ouvidos!

Sem ar condicionado e um calor escaldante, tem que deixar janelas abertas, mas o barulho e ensurdecedor! Só não é mais alto que os gritos de frustração dentro de mim... o sentimento de ser traída por um mecânico de confiança... a raiva de ter perdido tanto tempo e dinheiro!

Depois que a raiva passa um pouco nos divertimos assustando as pessoas ao lado da estrada acelerando perto delas e fazendo um barulhão! Terrível! Quê qui é isso missionária? Tentando manter a sanidade com um pouco de loucura!

Em casa, inquieta e agitada... reunião da equipe, é bom orar juntos! Estamos orando por essa cidade, essa região, esse país, esse continente (Nigéria, Zimbabwe, Africa do Sul)... quando nos damos conta estamos intercedendo pela volta de Jesus, pelo mundo todo!

Dois dias cheios, escola, emails, casa, construção, reconserto do carro... ajuda a amigos... e assim vai!

Hoje, sábado! Acordo cedo vou arrumar os últimos detalhes do carro num amigo que pediu para ajudar! Como é bom ter amigos! Resolvidos os problemas, para cidade resolver umas questões, comprar algumas coisas para casa e outros da equipe, deixar material de limpeza com empregada de amigos que estão voltando do Brasil, de volta para casa no final da manhã. Arruma isso e aquilo, manda carpinteiros endireitarem tudo o que fizeram torto, vigia trabalho deles a cada 15 minutos para os danos não serem grandes... enfim almoço!

Saindo para reunião de jovens em Muzuane! É, aí a coisa pegou!

Uma tempestade. Ajudo Dora a conter a água que quer entrar por frestras nas portas e janelas. Coloco tudo que quero levar em saquinho ziplock, numa mochila pequena nas costas, capa de chuva e lá vou eu de moto! Ai que delícia, andar de moto na chuva! Um super rally! Tá super divertido!

Até que encontro três homens no caminho estreito no meio das machambas (plantações). Está deserto, só eles e eu. Eu passo pelo meio deles, um deles empurra com força. Eu caio! Eu e a moto. Caio nas minhas costas, em cima da mochila que eles não conseguem ver embaixo da capa!

Os três pulam para cima de mim. Um segura meu pescoço quando eu grito por ajuda. Os outros checam meus bolsos. Não encontram nada! NADA! Tudo está na bolsinha nas costas. Eles todos gritam: Onde está o celular? Onde está o dinheiro?

Está chovendo, não está vendo? Eu saí de casa na chuva, para que trazer celular? – eu fico repetindo. Está chovendo, está chovendo!

De repente dois desistem, seguem o caminho andando. Um ainda desconfiado pergunta: E o dinheiro? Onde está o dinheiro?

Estou indo para igreja, porque ia precisar de dinheiro?

Me levanto, levanto a moto. Eles não queriam a moto?! Por que não levaram a moto? Por que não checaram tudo em mim para ver se não tinha celular na mochila nas costas?

Só pode ser Deus, só pode ser o sangue, só podem ser seus anjos!

Tantas coisas passam pela cabeça, parece que tudo acontece em camera lenta. O que eles vão fazer, o que vão levar, o que vão fazer comigo? O que devo fazer? Ó Deus ajuda!

Mas uma paz sobrenatural, uma paz que me permite levantar, levantar a moto, fazer ela pegar, virar a moto na estrada que mais parece um rio, ir embora com confiança.

Claro que chego na casa de mãe Nicky e desabo chorando no colo dela, mas por fora estou tremendo, por dentro estou em paz.

Não sinto raiva, não quero matá-los, não quero me vingar.

Não sei porque, mas sinto paz. Sei que Ele estava comigo, sei que Ele me guardou e protegeu.

Meu pulso doendo, duas feridas não grandes mas um pouco fundas na perna. Só! Nada mais.

Fazemos boletim de ocorrência na polícia, faço um exame médico e colocam uma faixa no meu pulso. É... alguém não está feliz com minha vida! Mas alguém maior está me vigiando, me guardando, velando por mim!

Quer mais prova de que estamos orando contra as coisas certas? Potestades de violência, roubo, imoralidade que dominam a região. Mas a música volta à minha mente... a música que tem sido tema da minha vida em Nacala, Moçambique:

CAN A NATION BE CHANGED
Matt Redman
Can a Nation be changed?
Can a nation be saved?
Can a nation return back to you?
We're on our knees
We're on our knees again
Let this nation be changed
Let this nation be saved
Let this nation return back to you
We're on our knees
We're on our knees again

E aí? Será que a vida de um missionário é mística/espiritual? Não, ela é prática, é diária, é mãos a obra! Mas ao mesmo tempo cada gesto, cada ação, cada coisa que fazemos tem efeito espiritual e místico! Então, a verdade é que sim, ela é mística/espiritual, mas não da maneira como muitos pensam!